A arte de habitar outros mundos: divagações de uma leitora comum
Neste texto escrevo sobre o papel da ficção na minha humilde percepção de leitora, já que não sou nenhuma mestra ou doutora em literatura. Adianto que são apenas pensamentos que se construíram solitários, após refletir algumas frases que escutei de amigos e podcasts por aí. Espero que a contribuição de vocês possa ampliar minhas ideias.
A ficção tem o poder singular de nos transportar para outros tempos históricos, mergulhar em culturas diversas, vivenciar modos de vida distintos e confrontar sistemas morais que contrastam com os nossos próprios. Os livros nos permite explorar realidades que, de outro modo, seriam inacessíveis, despertando empatia ou asco, curiosidade e um entendimento mais profundo sobre a complexidade da experiência humana. Por estes motivos, considero os livros a melhor invenção da humanidade. E muito me espanta quem consegue viver sem sua companhia. O mundo do leitor é mais vasto do que a realidade, essa é a magia.
O deslocamento imaginativo, proporcionada pela ficção, nos desafia a enxergar a complexidade do mundo sob novas perspectivas, ampliando nossa visão sobre a multiplicidade de existências. O grande trunfo da literatura.
Durante muito tempo, as vozes, os livros publicados, as narrativas, foram centradas em privilégios: tem gênero, raça, cor, classe social e continente. Ainda que as disparidades não tenham sido dissipadas por completo, acredito que o cenário mudou. Outras vozes vêm ganhando espaço, mudando o cânone literário e nossas escolhas ao comprar um livro. Sem saber como se deu o processo, percebi que leio mais mulheres do que há 10 anos atrás.
Mas o que talvez seja controverso ao meu próprio pensamento, julgo que a literatura não deve nada, além de expressar sua liberdade criativa e não tem a obrigação de ser um instrumento para qualquer fim. Apesar de acreditar que essa mesma literatura também pode iluminar as desigualdades sociais, dar voz às classes oprimidas e conectar/sensibilizar o leitor com outras realidades.
Tem dois livros que terminei recentemente: Léxico Familiar, de Natalia Ginzburg e Trilogia de de Copenhagem, de Tove Ditlevsen. O que sempre me chama atenção em livros de autoficção publicados em outros períodos históricos que não seja o meu, é observar os comportamentos e pensamentos das personagens à luz de sua época. São duas narrativas assombradas pela guerra. Histórias que a História (enquanto campo científico) dificilmente dá conta de preencher apenas através dos fatos. Neste sentido, a literatura é muito potente (desculpa a palavra horrorosa), pois oferece ao leitor uma dimensão preciosa da intimidade, do cotidiano e das memórias.
Individualmente, há uma série de razões para não nos conectarmos com uma obra literária: estilo da escrita, linguagem, o tema abordado, o nosso momento pessoal, etc. Mas, tenho observado umas implicâncias curiosas…
Uma amiga P. leu a “Pediatra”, de Andrea Del Fuego. Começou gostando muito da leitura. P. havia tomado a decisão de não ser mãe. Mas, o final da leitura achou decepcionante, sem sentido. Alerta spoiler: Cecília, uma pediatra sem nenhuma conexão com crianças, se afeiçoa pelo filho do amante e, nas últimas linhas, coloca o menino no carro e VAPO.
Na minha psicologia de botequim, entendi o porquê de P. ter se decepcionado com a obra. Posteriormente, assistindo a uma entrevista de Andrea, ficou claro que ela não tem esse compromisso redondo de agradar o leitor. Ela escreveu o final que quis. É a liberdade criativa. Ninguém esperava por aquele desfecho.
Outra amiga L. leu “Se não fossem as sílabas de sábado”, de Mariana Salomão Carrara (esse eu não li) e não gostou. Já vi outros depoimentos similares. Mas L. não se conectou com esse livro, assim como já ocorreu com outros, porque está cansada de uma narrativa burguesa.
Outro amigo C. disse que não tem o menor interesse em ler uma bicha branca francesa, se referindo a Edouard Louis.
Tem um episódio incrível do podcast Fio da Meada: um bate-papo com Branca Vianna e Ligia Gonçalves Diniz, autora de “O homem não existe” (Também não li).
Lígia fala sobre “os efeitos da experiência de uma tradição literária longamente masculina”, mas também sobre não ler literatura já sabendo aonde quer chegar. E esse é o meu ponto aqui. Confesso que flerto com essa ideia. Gosto de sair do espaço imaginativo familiar e adentrar searas completamente alheias e desconhecidas. Habitar a pele de outras personagens, quiçá pensar com outra cabeça que não a minha, afinal de contas já passo muito tempo dentro dela. Por isso não me incomoda ler Michel Houellebecq, por exemplo, mesmo existindo um profundo hiato sobre como enxergamos o mundo.
Como ressaltou Lígia, a gente perde muito quando deixamos de ler certos homens porque eles representam padrões de masculinidade que tentamos derrubar. Assim como perdemos quando desejamos que a obra literária siga nossa cartilha moral.
Apesar disso tudo, a arte sempre pode nos dar uma rasteira. Ela não é um manual com respostas ao final, nem um espelho límpido da realidade concreta, muito menos algo a ser interpretado para se encontrar o sentido da vida. A experiência da arte é um negócio arriscado, para todos os envolvidos. Ligia Gonçalves Diniz
Todo leitor sabe como a literatura é uma ferramenta poderosa para questionar o status quo. Não apenas os leitores, mas até mesmo os conservadores (que provavelmente não leem nada) sabem. Vide a retaliação e censura que o livro “O avesso da pele”, de Jeferson Tenório - lindíssimo, por sinal - sofreu. Retrato escancarado de um Brasil profundamente racista. Então é óbvia a necessidade de fazer circular narrativas que aprofundem a reflexão de temas espinhosos, que cutuquem nosso conforto e exponha nossos privilégios.
Quando li “Brancura”, do Jon Fosse, criei muitas expectativas e, simplesmente, não consegui me conectar. Achei repetitivo, não mergulhei no fluxo de consciência proposto pelo autor. Isso significa que a obra é ruim? Não.
Também não gostei de “Pessoas normais”, da aclamada Sally Rooney. Achei bobo, não me pegou em lugar algum. Isso significa que a obra é ruim? Não.
E nem considero que tenha perdido meu tempo lendo e insistindo em livros que não reverberam em mim. De alguma maneira, ter lido me fez entender um pouco sobre o porquê tantas pessoas curtiram e eu não. Termino sempre refletindo alguma coisa…
Em relação ao Jon Fosse, gastei muitos neurônios pensando em como, talvez, autores de países escandinavos, por exemplo, por viverem uma outra realidade social, podem se dedicar mais à metafísica, à abstração. E que minha formação como leitora, fora desse escopo, pode ter interferido na maneira como recebi o livro. OU NÃO! KKKKKKKKKKKKKKKKK mas fiquei viajando nessas réguas.
Atualmente estou lendo “A consciência de Zeno”, de Italo Svevo. É um livro interessantíssimo, escrito em forma de memórias como um exercício psicanalítico. E “Zeno” é um homem risível, um tanto pedante, e talvez sejam essas características que tornaram a leitura especial. Estou habitando a mente de um homem burguês de meia-idade, cheio de contradições e autoenganos, mas quem escapa, não é mesmo?
O que quero afirmar é a defesa da ficção, a pluralidade de universos que a literatura cria, as possibilidades de linguagem e histórias. Aproveitar até mesmo o que moralmente não nos veste para refletir de maneira crítica.
No mais, estou em busca do PDF “O grau zero da escrita”, do Roland Barthes, para aprofundar as questões que coloquei aqui. Caso alguém tenha, por favor, dê um sinal de fumaça!
Reaças sob demanda, episódio da Rádio Escafandro sobre o brasil paralelo;
Todas as coisas que aprendi com meu pai, Bruna Fonseca.
Os caminhos de um livro, de Surina Mariana.
Notes da Ludmila Primo, sobre classismo e racismo.
O que é um leitor, de Rodrigo Casarin
A solidão é o contrário do amor?, de Noemi Prates.
Último livro que terminei. Gostei demais! Relação de mãe e filha intensa, o que me deixou muito desconfortável e pensativa, temas difíceis e muita sensibilidade com a narradora criança. Recomendo demais!
Julgando o livro pela capa
Quando a lista de “melhores livros do século” do New York Times saiu, admito, corri para ver. Adoro uma lista, não importa se é do NYT ou de um amigo. Certa vez, pedi a uma grande amiga leitora, Marília Bonna, me indicar alguns livros. O mestrado engolira todo meu tempo e não sabia mais como retomar minha relação com a literatura. Ela carinhosamente fez…
Toda história daria um livro?
Estava lavando a louça e ouvindo o penúltimo episódio do Rádio Novelo Apresenta, “Voltar ao relógio” e fiquei muito emocionada com a história do sociólogo José Henrique Bortoluci que escreve um ensaio biográfico sobre seu pai (O que é meu), que foi caminhoneiro por 50 anos e trabalhou na construção de muitas infraestruturas do país. Não li o livro, só e…
Rai, concordo demais com o que você expôs nessa edição. Fico pensando que estamos tão imersos nessa ideia de bolhas, muito preveniente da experiência nas redes sociais, que nos fechamos para o mundo afora, do diferente. Nos feeds somos bombardeados pelas mesmas narrativas de sempre, as mesmas carinhas e os mesmos debates, que quando nos deparamos com algo diferente, um enredo, um desfecho diverso do que estamos acostumados ou esperávamos, tudo desaba.
Eu adoro ler coisa que me desperta para além do meu círculo. Penso que são sacudidas necessárias, que me lembram que não estou só nesse mundo e também me alertam para o fato de que a luta não está ganha.
Falei demais, né?
Hahahah
E outra, essa dona Pilar me deixou chocada com A Cachorra. Preciso de mais tempo para encarar outra obra dela.
Um beijo!!
concordo muito com você: a literatura é - e precisa ser - plural. nela, cabe tudo o que é humano. e o leitor tem a autonomia para decidir o que ler.