Estava lavando a louça e ouvindo o penúltimo episódio do Rádio Novelo Apresenta, “Voltar ao relógio” e fiquei muito emocionada com a história do sociólogo José Henrique Bortoluci que escreve um ensaio biográfico sobre seu pai (O que é meu), que foi caminhoneiro por 50 anos e trabalhou na construção de muitas infraestruturas do país. Não li o livro, só escutei o podcast que traz uma entrevista bonita com o autor e alguns áudios dele com o pai enquanto estava no processo de escrita do livro, que coincidiu com a descoberta de uma doença.
O fato é que fiquei refletindo em frente a pia sobre as memórias - ora poucas, ora repetitivas - que constituem o repertório de lembranças do meu pai e da minha mãe sobre seus passados. Atiçou minha curiosidade saber mais.
Para a psicanálise, a família é uma ficcção e os laços que une seus membros são imaginários. Para o Thomas Shelby, a família é abrigo da tempestade quando não é a própria tempestade.
Continuei em frente a pia pensando na história dos meus familiares.
Eu tenho um hábito muito particular de inventar desfechos ou preencher lacunas das histórias que me escapam. Nas linhas a seguir pode ser que haja uma fantasia que se tornou um fato na minha cabeça com o passar dos anos.
Meu avô paterno, português, veio ganhar a vida no Brasil. Quando? Não sei. Deixou minha avó e os filhos em Portugal - quantos eram? Quantos anos se passaram? Não sei, mas prometeu voltar para buscá-los, o que não aconteceu. Cargas d’água, minha avó descobriu - como? - que meu avô estava com outra mulher no Brasil - em Nova Iguaçu (!). Ela colocou as crianças no navio e aqui aportou; expulsou a amante e aqui permaneceu até a morte com o meu avô. Abriram uma padaria, os filhos trabalhavam com eles ou atrapalhavam e foram felizes para sempre. Tenho algumas lembranças dessa padaria e de uma lata de biscoitos amanteigados que minha avó escondia no quarto. Esse é o único fragmento de história dos meus avós paternos que eu sei. E também as únicas lembranças que guardei.
A pergunta de um milhão de dólares: como minha avó descobriu a traição num mundo analógico e cheio de barreiras geográficas e oceanos a perder de vista?
Então meu pai cresceu no Brasil, fez física e nunca exerceu. Teve o primeiro casamento, dois filhos, separação. Conheceu minha mãe, eu nasci, separação. Meu pai morou na África do Sul, na Austrália, em Portugal, mas sempre voltava para o Brasil. Não sei por qual razão ele não conseguiu se estabelecer em nenhum desses lugares. Como todo português, ele adora falar mal do Brasil e vive planejando o triunfal retorno a Portugal, mas nunca conseguiu sair daqui definitivamente. Porquê? Eu fico curiosa para saber todos os detalhes dessa motivação de sempre partir. E imagino que, no final das contas, ele não se sinta em casa em país nenhum. Mas meu pai está vivíssimo, então mora ai a chance de tentar descobrir mais sobre a sua história.
Caminhando para o lado materno, posso afirmar que a história da minha mãe eu conheço mais, porque nas nossas conversas ela sempre volta neste passado. Eles eram muito pobres e minha avó recolhia matos para as crianças comerem com angu. Ela teve sete filhos e morreu aos 33 ou 35 anos. Mas antes disso ela perdeu um filho ainda criança, com dois anos, o tio Carlos. Como é difícil chamar um bebê que não conheci e que viveu até os dois anos de tio, mas é o vínculo que teríamos.
Quando minha avó faleceu o meu avô distribuiu os seus filhos. Deu um punhado para cada ‘parente’, se estabeleceu com outra mulher e teve mais dois. Aqui, minhas memórias foram censuradas. E tem um monte de pormenores cabeludos nessas passagens que não posso abrir completamente, pois o efeito borboleta seria um caos familiar. Cada um deseja ficar confortável com as memórias que construiu pra si.
Minha mãe foi criada por um tio e a sua esposa, que continua viva aos 98 anos e eu chamo carinhosamente de avó. Porque ela me nutriu com o afeto de avó e pastéis. Criou minha mãe e dois dos seus irmãos. Os outros 3 foram para São Paulo, mas depois voltaram para o Rio.
Minha avó postiça
Essa divisão da família potencializou o sofrimento da minha mãe. Não bastava ter se tornado órfã aos 12 anos, os irmãos foram arrancados do convívio dela. A desculpa que circulava no seio familiar era a condição de pobreza do meu avô que o impedia de ficar com todos os filhos. E era homem, dispensado pela sociedade das tarefas do cuidado. Mas, pelas histórias posteriores, entendi que ele sofreu com essa escolha. Ou se arrependeu, nunca vamos saber.
Minha mãe e os dois irmãos mais velhos começaram a trabalhar ainda muito novos para conseguir trazer os outros irmãos de volta e tentar reconstruir aquele lar que foi despedaçado com a partida da minha avó biológica. Não dá para narrar com toda riqueza de detalhes todos os pormenores dessa história, mas daria um livro.
No final das contas, minha mãe conseguiu resgatar os irmãos e eles viveram juntos por muito tempo. Na realidade, até hoje vivem. E esse acontecimento marcou para sempre o entendimento de família que minha mãe construiu: é um pelo outro até hoje, não sobra espaço para mais ninguém. Ou melhor, somente algumas brechas para os novos membros que vão chegando.
Ouvindo o podcast e depois refletindo sobre a história dos meus pais, fiquei imaginando como a vida deles também poderia dar um livro. A história da minha avó postiça daria uma novela turca fenomenal. Já pensei algumas vezes em transformá-los em personagens, pegar alguns elementos de suas trajetórias e ficcionalizar, tal qual no filme Peixe Grande e suas histórias maravilhosas. Minha família tem um repertório robusto de acontecimentos que desafia a ficção, mas me falta talento para colocar isso no papel.
Inclusive tenho um exercício de escrita que é ficcionalizar pessoas que eu conheço. Escolha uma - do seu convívio ou não - analise sua personalidade, os fatos de sua vida que você conhece e depois adicione elementos da sua imaginação que cairia bem naquela história. Pimba! Uma oficina de personagens.
A par de tudo isso, acho que toda vida daria um livro. Não há um ser no mundo que não seja passível de ter sua história contada. O mundo é muito interessante, as pessoas são interessantes, suas histórias também devem ser. Basta um bom escritor para traduzir os acontecimentos e um livro nasce.
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Catálogo de fotopintura da coleção Titus Rield. Acho fascinante essas fotopinturas que as famílias encomendavam. Já quero ter o meu na parede de casa.
Comecei a ler o livro Latim em Pó, sobre a formação da língua portuguesa e suas transformações e estou apaixonada. Pena que estou lendo em PDF, quero o livro mesmo.
A Elena Ferrante no Fratumaglia disse que era capaz de escrever qualquer história. Desse um tema e ela desenvolvia. A questão é que literatura e vida não são duas coisas separadas, por isso uma bebe da outra a todo momento.
Acho que o próprio fato de você tentar desvendar essa vida cheia de conexões espalhadas pelo mundo e de galho que não se enxergam, por si só já seria o seu tempo e o vento.
Não só daria um livro, mas também, um roteiro de novela das 18:00 muito bom!!! Fiquei criando as cenas na minha cabeça... Rs