Retrospectiva literária de 2023
Particularmente 2023 foi um ano bem difícil, mas também foi um ano que li mais. Desde a defesa da dissertação, ganhei mais tempo para me dedicar a leitura. Não vou lembrar de cabeça tudo o que li, não anotei, não faço métricas e cálculos. Já fiz muito isso na adolescência, de anotar cada obra que eu lia por mês para ter um panorama anual, mas hoje isso não faz mais sentido pra mim. Selecionei algumas leituras de 2023 para compartilhar com vocês.
Dias de Abandono, de Elena Ferrante.
Eu só descobri Elena Ferrante no ano passado e fui arrebatada. Já li tudo dela, exceto o Amor Incômodo. Me pergunto onde eu estava com a cabeça em 2015 quando saiu a publicação da Amiga genial no Brasil e eu sequer ouvi falar. Talvez eu até saiba, estava mergulhada na maternidade sem muito tempo e disposição para literatura.
Enfim... Dias de abandono é outra obra incrível da Elena Ferrante e conta a história de Olga, uma mulher abandonada pelo marido (trocada por uma jovem) e com duas filhas a tira colo. A personagem é densa, carrega sentimentos pesados, daqueles que também já sentimos quando somos surpreendidas pela vida, quando sabemos lá dentro do nosso íntimo que o nosso tempo foi desperdiçado, mas que não adianta se lamentar. É interessante sentir o processo da personagem de escrever uma nova vida e se compreender no mundo sem a muleta do casamento. Já carreguei por um bom tempo as mágoas que Olga carrega.
Tudo era tão casual. Apaixonei-me por Mario quando jovem, mas poderia ter me apaixonado por qualquer um, um corpo qualquer ao qual atribuímos sabe-se lá quais significados. Um longo pedaço de vida juntos, e você já acredita que ele é o único homem com quem pode se sentir bem, atribui-lhe sabe-se lá quais virtudes decisivas, e em vez disso ele é só uma flauta que emite sons de falsidade, você não sabe realmente quem é, nem ele mesmo. Somos ocasiões. Consumimos e perdemos a vida porque um qualquer, em tempos longínquos, por vontade de descarregar o pau dentro de nós, foi gentil, nos escolheu entre as mulheres. Trocamos não sei por qual cortesia dedicada exclusivamente a nós o desejo banal de foder. Amamos sua vontade de trepar, sentimo-nos tão cegas a ponto de pensar que seja a vontade de trepar conosco, só conosco. Oh sim, ele que é tão especial e que nos reconheceu como especial. Damos um nome àquela vontade de pinto, a personalizamos, e a chamamos de meu amor. Para o inferno tudo, essa cegueira esse tesão infundado. Como no passado fodia comigo, agora fode com outra, o que posso querer? O tempo passa, uma vai, a outra vem. Estava por engolir algumas pílulas, queria dormir deitada sobre o fundo mais sombrio de mim mesma.
O que ficou deste livro em mim foi “Não há lugar seguro no mundo”.
A pediatra, de Andrea Del Fuego.
O que mais me pegou neste livro é como a autora cria uma personagem detestavelmente real. Escrota como alguém que a gente conhece. Escrota como talvez, em alguma medida, também somos e não reconhecemos.
O livro conta a história de Cecília, uma médica sem nenhuma paixão ou aptidão pelo ofício, pediatra que odeia criança, patroa que humilha a empregada, mas muito racional e consciente da posição que ocupa e dos privilégios que têm. A personagem é ácida, mesquinha, indiferente e é esse jeito dela que prende o leitor.
Conversando com uma amiga - Loeni - que também leu o livro, ela me disse considerar que a autora perdeu uma grande personagem, que o final é piegas e óbvio. Me mandou uma crítica interessante que me fez refletir muito sobre obra literária e expectativas do leitor. Muitas vezes desenhamos outro desfecho, esperamos que as personagens sigam outros caminhos, mas daí o livro não seria o livro.
A parte que eu mais dei risadas internas foi essa em que ela mete o malho nas doulas. Só me faz lembrar de algumas amigas de se consideram moralmente superiores e evoluídas porque optaram por parto natural…
Doulas procuram cursos de enfermagem obstétrica que, elas têm certeza, vão levá-las ao patamar de alguma coisa diplomada. Elas se aproximam de pediatras permissivos que acabam aceitando-as porque as mães passaram a exigir babás de mulher adulta ocupando espaço físico e emocional. São dependentes químicas, viciadas em parto natural, em que se deleitam com a aventura sem ter que subir a montanha, vampirizando o parto alheio para aspirar ocitocina, atrás da bruma potente do nascimento. Sem contar que, para elas, o médico pediatra em cena nada deve interferir no espetáculo da assistência natural, o médico fica em pé no canto do apartamentinho como fator de suporte psicossomático, faz de conta que temos médico, mas sem a medicina. Isso quando o pediatra natural não chega atrasado na casa da paciente, pois foi convocado no limite da angústia fetal.
Talvez você deva conversar com alguém, de Lori Gottlieb
Parece autoajuda, talvez seja. Mas foi uma leitura muito necessária, sobretudo no momento do ano em que eu li. Retomando a terapia, cheia de questões, de limites para derrubar, outros para construir, presa na minha segura solidão: o livro chegou em boa hora.
A obra traz histórias de uma terapeuta com seus pacientes e com seu próprio terapeuta. Em alguma medida nos encontramos nas mesmas dificuldades retratadas: a vida que planejamos e a vida que temos, as angústias, frustrações, manutenção de relacionamentos, lidar com o que tem, etc. A narrativa está muitoooo longe de ser uma autoajuda, pode acreditar. Não são lições morais ou psicanalíticas para afagar nosso ego, nem um manual.
Em outras palavras, a terapia tem a ver com entender o indivíduo que você é. Mas parte de entender a si mesmo é desconhecer a si mesmo, abrir mão das histórias limitantes que você vem se contando sobre quem você é, de modo a não ficar aprisionado por elas, podendo viver sua vida.
É isso mesmo, às vezes o inferno somos nós.
Brancura, Jon Fosse
Dá medo de escrever minha relação com essa obra, é difícil criticar ou não gostar de livro premiado, aclamado, sobretudo quando você é só uma leitora e não uma crítica literária com uma bagagem monumental cheia de referências. Criei muitas expectativas, devo confessar. Um burburinho enorme, prêmio Nobel de Literatura, fiquei curiosa. O livro é bem escrito e conta a história de um homem que dirige sem rumo e se perde numa floresta gelada. Tem um ar de absurdo, de fantasia, de inexplicável. É uma narrativa que prende, você precisa chegar até o final. Mas no final eu fiquei “foi isso?”.
Não foi pra mim. Adoraria ler resenhas sobre ele, me indique se souber de alguma.
O avesso da pele, de Jefferson Tenório
Escrevi sobre ele aqui.
A palavra que resta, de Stenio Gardel
É uma obra de sensibilidade ímpar. Conta a história de Raimundo, um homem analfabeto e gay que vive no sertão. Sofre a violência da homofobia, do abandono, da pobreza, da intolerância. Expulso de casa, Raimundo vai se entendendo pela vida, ora de mal com sua sexualidade e também com medo até achar seu lugar no mundo. Raimundo guarda consigo por 50 anos uma carta que nunca leu. E as páginas finais, tão lindas, dão sentido ao título do livro “A palavra que resta”.
Em algum lugar li que “a palavra é emancipadora” e o livro de Stenio fala sobre isso, o poder da palavra (quase esquecido por nós alfabetizados) que dá novos significados a vida e também sobre o tempo - que passa ou escorre.
A recusa do não-lugar, de Juliano Pessanha
Escrevi sobre ele aqui. Tive uma conexão muito particular com essa obra.
As margens e o ditado, de Elena Ferrante
Este livro, última publicação de Ferrante, trata do seu processo de escrita e suas referências. O que mais me pegou foram suas tentativas de se compreender como escritora mulher, tendo como referência sempre obras de autores masculinos, a pressão por “escrever bem, escrever como um homem”, como se nosso repertório fosse menor.
“Comecei a guerrear comigo mesma: por que isso, por que não aquilo, está bom assim, não está. Em poucos anos, passei a ter a impressão de não saber mais escrever. Nenhuma página estava à altura dos livros que me agradavam, talvez porque eu fosse ignorante, talvez porque fosse inexperiente, talvez porque fosse mulher e, portanto, melosa, talvez porque eu fosse burra, talvez porque não tivesse talento.”
Nós, que nos arriscamos na escrita, em passar para o papel nossas ideias, experimentamos constantemente esses mesmos sentimentos e sensações.
Escrever a partir de nossa linguagem, nossa sensibilidade, com nossas próprias referências é libertador. E ela conseguiu! Acompanhar o processo criativo de escrita da Ferrante é inspirador.
“Diga a coisa como ela é”
Infocracia: digitalização e a crise da democracia, de Byung Chul Han
Li esse livro duas vezes: para o deleite e para montar minhas aulas. De alguma maneira, todos os textos que abordo redes sociais nesta newsletter tem uma influência dessa leitura. Byung Chul Han, apesar de pessimista (pq é realista) consegue fazer análises muito contundentes sobre as questões da contemporaneidade. Crises nas democracias, vigilância, redes sociais, novo niilismo, sociedade da informação, etc.
O prognóstico todo mundo sabe, mas ignora. As redes, que nasceram com essa promessa de conexão instântanea e global, é o que está nos destruindo. Ação é sinônimo de curtir e compartilhar - presos na matrix.
O livro é curtinho, mas tem o potencial de abrir nossos olhos a força para enxergar com mais nitidez os prejuízos sociais e cognitivos que o mundo digitalizado nos impõe.
Dito isto, estou aproveitando essa energia de final de ano com reflexões e novas perspectivas que inclui passar menos tempo online. Já exclui o hospício do celular - o Twitter - e a loja de departamento cafona - o Instagram.
Vamos ver quanto tempo eu consigo. Quero aproveitar mais a vida sem estímulos digitais constantes até chegar ao momento que me seja indiferente.
O presídio digital é transparente.
A vegetariana, de Han Kang
Vejo vários amigos já ambientados na literatura sul-coreana e nada tinha lido. Optei por começar por um clássico, na tentativa de acertar de primeira. O livro conta a história de uma mulher que deixa de comer carne numa tentativa de rejeição à brutalidade, mas não se trata de uma obra que problematiza o consumo de carne, nada disso. O vegetarianismo é só uma cortina que desvela o inconsciente perturbado e inacessível de Yeonghye e as mudanças que ocorrem com a personagem quando ela toma essa decisão e sua desumanização paulatina.
O próximo da minha lista é Bem-vindos à livraria Hyunam-dong.
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Me despeço de 2023 lendo Gertrude Stein, A autobiografia de Alice B. Toklas. Todos os caminhos deveriam me levar de volta a Paris, mas só a literatura me leva atualmente.