Foram 3 dias lendo “O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório. Eu não ia começar a leitura naquele sábado, mas poucas páginas já foram suficientes para deixar de lado as coisas que estava fazendo e me isolar em suas páginas.
O tema do livro é profundo - o racismo estrutural. O narrador, Pedro, conta a história do seu pai, um homem negro vivendo no sul do país que é assassinado numa abordagem policial. Aliás, uma das coisas que mais me encantou e me prendeu no livro foi o narrador. Assertivo, ele vai dando corpo, cores, detalhes sobre a história do pai e as memórias em que ele processa o luto. Somos transportados para dentro dos personagens - ou melhor, para pele dos personagens.
A história é contada em segunda pessoa. Tem movimento: ele vai e volta no tempo. Os parágrafos são curtos e Pedro vai destrinchando a vida dos seus pais, a complexa e triste relação dos dois, suas trajetórias diferentes, mas ambas marcadas pelo racismo e pela luta da sobrevivência.
Conseguimos sentir suas angústias, seus sofrimentos e seus medos. Como pessoa branca, jamais saberei, de fato, o que significa ser atravessada por todas as experiências de dor causadas pelo racismo. Mas o potencial da literatura é justamente esse: de nos colocar no âmago de suas histórias, de sermos transportados para outras mentes, outros corpos, outras dimensões da vida e outras maneiras de estar no mundo. São os livros que nos tiram da superfície.
“Escreve-se literatura para transformar a si e ao outro pela linguagem” Noemi Jaffe, em Escrita em movimento.
Jeferson coloca no papel muitas violências sofridas pelo povo negro desse país: das abordagens policiais a manifestações mais sutis do racismo, mas não menos violenta:
A história é bruta, causa indignação, mas o texto é delicado e as reflexões que vêm com ela são muitas e necessárias. Sobretudo neste país onde as pessoas fingem que o racismo não existe.
Como professora me identifiquei profundamente com a experiência de Henrique no magistério:
“Com o passar do tempo o desencanto tomou conta da sua vida. A escola e os anos de prática docente te transformaram num operário. Anos e anos acreditando que você estava fazendo algo de significativo, mas vieram outros anos e anos e soterraram suas expectativas. A precariedade da escola venceu, e você estava cansado.”
A desilusão ainda não me capturou, não tenho tantos anos assim de magistério. Mas aquela motivação bonita e ingênua que leva uma pessoa a se tornar professora com a esperança de colaborar para a transformação do mundo morre um pouquinho quando esbarramos com uma turma apática e desinteressada.
Espero que o cansaço não me vença, como foi com o Henrique. Mas de alguma maneira esses dias ruins são sobrepujados quando recebemos, nem que seja, uma migalha de atenção. Saio muito feliz de sala de aula quando o assunto rende, quando há participação, interesse e, assim, esqueço daqueles dias que não foram tão bons e me animo para a próxima aula - quem sabe uma aventura diferente.
O avesso da pele é uma grande obra. Gostaria de presentear meus alunos com um exemplar. Quem sabe na mega da virada, não é?!
Obrigada pela companhia de vocês. Finalmente, não me sinto escrevendo para ninguém.
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Série MA-RA-VI-LHO-SA: Atlanta (Netflix). Aborda questões raciais de uma forma sarcástica, provocativa e, de quebra, garante boas risadas.
Marcados: a história do racismo nos Estados Unidos. Esperando uma versão brasileira herbert richers desse documentário.