Para quem não conhece, "A recusa do não-lugar" é um livro de Juliano Garcia Pessanha, escritor e professor de filosofia. A obra me pegou muito desprevenida, pois eu não sabia exatamente do que se tratava. Não li nenhuma resenha prévia e soube do livro por uma postagem da Fabiane Secches. Já na metade do livro o entendi como um rompimento do narrador com Heidegger. Mas vai além disso e não pretendo mirar necessariamente às discussões filosóficas da obra, que são pertinentes e muito bem fundamentadas pelo autor, e sim mergulhar aonde ela me acessou.
Toda obra literária parece ganhar novos significados à luz do seu leitor.
Enxerguei o livro como um relato denso sobre as nossas tentativas frustradas de se singularizar no mundo. Mundo este que parece ser muito mais gentil com as pessoas normais, àquelas com suas competências mundanas ajustadas ao ritmo do capital e que sabem dançar conforme a música. O personagem-autor JP, da Recusa do não-lugar, é o indivíduo que "vivia suspenso na perplexidade, que fazia ginásticas incríveis e imitava e roubava os relatos alheios". Aquele intelectual ermitão, solitário, "um ser especial, um ser teologicamente investido".
Me fez lembrar quando eu descobri Schopenhauer na adolescência e considerava charmoso ser uma pessimista, com aquelas frases "A solidão é a sorte de todos os espíritos excepcionais"; "Quanto menos inteligente um homem é, menos misteriosa lhe parece a existência". Para experimentar o âmago de estar vivo, você precisa estar embriagado desta natureza ascética. Usamos as frases dos outros, a (in)experiência do outro para constituir quem somos. Como se ficar à margem do mundo, à margem da sociedade e submersos nas reflexões existenciais nos tornassem pessoas excepcionais. Parece que é neste lugar que chega JP: o resgate para a vida, o nascer pra dentro, abandonar Heidegger, encarar as rachaduras reais e elaborar o luto de quem ele foi uma vida inteira. "É alto o preço que paga aquele que não se integra ao mundo."
"E foi por isso que agradeci o antigo reitor de Karlsruhe por ter convertido um idiota singularizado num cidadão comum e um revolucionário extasiado num homem em busca de emprego, integração e felicidade." Juliano Garcia Pessanha
No final das contas, o que precisamos é mais básico do que supõe todo o existencialismo filosófico. Emprego, integração, felicidade, ou seja: contas pagas e boas companhias já proporcionam alguns momentos de felicidade. Parece pouco, mas é bastante.
Obviamente que não é a maioria dos indivíduos que enxerga em si uma certa excepcionalidade, já que muitos estão mergulhados (outros se afogando) numa luta pela sobrevivência que não concede nem tempo, nem ferramenta para as questões metafísicas do mundo. Dito isto, penso que essa excepcionalidade pode também ser pensada como um marcador de classe. Se deslocar do mundo e ficar suspenso também é um modo de forjar pra si uma determinada distinção social, pautada num romantismo radical aristocrático.
Lembro de alguns momentos, confesso que até recentes, me senti num movimento de precisar diminuir para caber. E foi conversando com meu marido, que partilha de uma visão de mundo antagônica a minha, que entendi como estava sendo ridícula, o "idiota singularizado". Daí, entendi a importância de ter em minha vida pessoas que desafiem as percepções de mundo que eu construí ao longo dos anos. Ajuda a não ficarmos enclausurados em visões limitadas, quiçá errôneas, acreditando que somos seres moralmente superiores ao restante da humanidade.
A Recusa do não-lugar é um livro que dá muito mais do que eu levantei aqui. O percurso literário coloca num ringue Heidegger e Peter Sloterdijk (que eu não conhecia), num debate filosófico de altíssimo nível, visceral, que nos faz questionar muitas coisas. Escolhi apenas um recorte para dar contorno, há algo que venho pensando: que é esse processo de singularização de toda uma vida, para no final das contas a gente perceber que se colocar no mundo como uma pessoa comum dá muito menos trabalho e gera menos sofrimento.