Sonhos indecifráveis e o olho da baleia
Experiências surreais e improváveis que proporcionam a dimensão do real
Dizem que dormir é uma espécie de preparação diária para a morte e os sonhos são resquícios do dia que colam no nosso inconsciente e se misturam aos nossos medos, desejos e traumas. Acho essa explicação mais razoável e por isso não sou adepta a checar significados genéricos na internet ou na revistinha do João Bidu. De todo modo, quando não há evidências: especula-se. Então, vamos lá!
Não há delírio mais peculiar do que esse emaranhado de situações ganhando contorno e vivacidade justamente no momento do descanso. Inclusive fico chateada quando sonho que estou trabalhando, pois já acordo desgastada. Apesar de estapafúrdios e sem nexo algum, eles são muito reais.
Eventualmente arrumo brigas no meu sonho e eu parto para o soco (o que eu não faço na vida real). Mas sempre acontece a mesma coisa: meus braços ficam no slowmotion (velocidade 0.2) e eu não consigo empenhar a força necessária para terminar a luta.
Quando eu sonhava com dentes, por exemplo, sabia que não era um presságio da morte, apesar da profecia popular. Era só um trauma cristalizado nas gavetas da minha mente, mas que se abriam nos meus sonhos proporcionando enormes constrangimentos.
Alguns são indecifráveis. Provável que nem Jung conseguiria me explicar o porquê de um dia ter sonhado que a Sandra de Sá me ligava no meu aniversário, me parabenizava e ainda perguntava onde seria a comemoração (que era na Ilha Grande). Eu não escuto Sandra. Não tenho a menor ideia de como ela foi parar ali. Ou mesmo quando nasciam rodelas de linguiça calabresa nas minhas pernas, provocando uma intensa angústia.
Outros sonhos são mais previsíveis. Tenho um repertório extenso de sonhos repetidos que certamente significam alguma coisa: altura e mar. Passarelas e viadutos bem altos e eu prestes a cair deles. E as praias que aparecem com frequência, mas pela paixão que nutro pelo mar. Ainda que as ondas surjam com violência, ou mesmo tsunamis, eu consigo contornar. Jamais me esqueceria da noite em que voei numa noite estrelada de rasante no mar. Foi uma experiência incrível.
E quando uma moça estava flertando com meu ex-marido no metrô e fui até ela tirar satisfação. Com medo, ela se transformou numa laranja. Eu a peguei no chão, cortei ao meio e bebi o sumo.
E tem desses sonhos que são muito reais. Lembro-me de certa vez que sonhei com um assalto (recorrente para moradores do Rio de Janeiro). Levei três tiros no peito. Senti o cheiro de carne queimada e aquilo me incendiando por dentro de forma cintilante. E em uma fração de segundos fui adormecendo e pensei "estou morrendo, então isso é morrer". E quando morri, acordei. Desde então, tenho certeza como é a experiência de tomar um tiro e de morrer sem ter precisado passar por isso. É um incêndio dentro de você e um sono; não dá tempo sequer de passar o tal filme da vida na cabeça.
Mas por que resolvi escrever sobre sonhos? Aconteceu uma coincidência muito gostosa, fez cair uma lágrima do meu olho no meio do ônibus. Mas antes vou ter que contar um último sonho que tive há alguns anos.
Eu estava nadando num mar aberto, quando uma baleia apareceu. Fiquei imóvel, estupefata, observando aquele animal gigante e silencioso na minha frente. Lembro de não ter medo. Estava espantada com aquela presença tão onipotente e ao mesmo tempo serena e próxima. Que curioso, uma baleia! O mundo em suspenso na sua versão onírica.
No ônibus, estava lendo "O perigo de estar lúcida", de Rosa Montero. No trecho, ela estava fazendo um passeio de bote no pacífico para avistar cetáceos, quando de repente, um estrondo seguido de um enorme jato d'água, emergiu uma baleia. Ao lado dela estava aquele colosso oceânico com sua pele borrachuda e seu olho gigantesco. "Depois do olho ainda havia muita baleia para passar, muito músculo pétreo ornamentado com anêmonas, até que a criatura finalmente ergueu sua cauda titânica e mergulhou na vertical, muito lentamente."
Quando perguntada pelos amigos se teve medo da proximidade com a baleia, Rosa disse que "Nem um pouco. Para ter medo você precisa estar dentro do seu eu, e naquele momento eu era a baleia, e a anêmona, e a alga, e a gota d'água que brilhava no sol."
Quando terminei de ler sua experiência REAL com a baleia, sabia exatamente do que ela estava falando. Tinha experimentado essa sensação no sonho. E gastei alguns neurônios dentro do ônibus pensando em como os sonhos, a literatura e as artes de uma maneira geral tem essa capacidade de provocar experiências tão magníficas. Ter sensibilidade para sentir esse estupor é um privilégio, sonhando, contemplando ou lendo. Se emocionar e se fundir com a simples observação é como sair do próprio corpo e talvez uma espécie de meditação.
Apesar de ter lido textos incríveis sobre o livro "O perigo de estar lúcida", de Rosa Montero, ainda quero esboçar alguma coisa sob a perspectiva da história da loucura e a tirania dos diagnósticos.
Para finalizar, alguém já leu o livro "Manual da Faxineira", de Lucia Berlin?
Das coisas boas que encontrei por ai:
Por que ainda acreditar no livros?, de Rodrigo Casarin. "Por que acreditar nos livros mesmo quando são tão desprezados, mesmo quando o mundo desmorona? Porque aproveitar o tempo para ler e se meter por universos literários está entre as coisas mais aprazíveis a se fazer antes do vermes roerem nossas frias carnes".
Eu quero ser lida, mas não só depois de morta, de Dia Nobre. Eu adoro a escrita da Dia, porque tem aquela pegada de trazer a história e a literatura. O resultado é sempre rico e inspirador!
O texto foi curtinho e as recomendações miúdas, pois não tem sido fácil acompanhar o fim do mundo. Assim como a maioria das pessoas, estou aérea e vendo pouco sentido no existir. Sei que uma hora passa. Um abraço para você que chegou até aqui.
O mundo dos sonhos é algo incrível mesmo. E assustador. Neles, já senti uma facada no quadril e acordei com dor naquele lugar. Já sonhei amamentando um bebê, e acordei com o seio dolorido. Já me apaixonei, e acordei com saudade daquela pessoa imaginada. Também recorro às interpretações da internet, ainda mais quando sonho várias vezes com bebês, perseguições e situações de morte.
Às vezes, o sonho é um refúgio de experiências lindas e emocionantes.
Outras vezes, nos mostra em 3D o lado mais obscuro e terrível da "vida".
Cá entre nós, gostaria que todos os sonhos fossem deliciosos, um descanso das limitações do dia. Estou cansado de sonhar com tarefas do trabalho ou vendo promoções no supermercado. Quero viagens, encontros sensuais, voar por aí... Mas pelo menos não tomei três tiros no peito.