Preservar a paz, mas a que custo?
Está cheio de best-sellers por aí ensinando os reles mortais a ter conversas difíceis e corajosas. Pelo visto, não sou a única com dificuldades nesta nobre arte. Foram anos cultivando o mau hábito de largar pra lá ou me afastar, por não conseguir estabelecer e sustentar uma conversa difícil. Se Lacan já disse que toda comunicação está fadada ao fracasso, quem sou para me fazer clara? E minha desculpa conveniente para me livrar das situações é a preservação da minha própria paz. Mas a que custo tenho feito isso?
Afinal de contas, qual paz me resta quando tudo fica engasgado na garganta? Fica aí o questionamento…
Lembro de assistir a entrevista da Grada Kilomba no programa Roda Vida: que sabor! A sua fala pausada, clara, serena é muito convidativa à reflexão. Dá para passar seis horas só ouvindo a Grada falar sobre arte, política, racismo e feminismo. Ela discorre sobre os temas com muita inteligência, leveza e pouquíssimos decibeis. Hipnotizante. Fina, elegante e não como esses coachs que pipocam na internet gritando frases de efeito que só capturam os indivíduos cuja inteligência já foi comprometida.
Eu, que me constitui no mundo com uma comunicação combativa (o que é muito cansativo), senti um bálsamo ao ouvi-la. Enquanto observava a sua forma de se comunicar, foi ficando cada vez mais claro o que eu não era. Uma antidescrição. Se eu admiro e quero me cercar de pessoas com uma comunicação mais leve e clara, por que eu não tento mudar a maneira de me expressar? Se eu acho cansativa a pessoa (eu) com a comunicação combativa, porque sou assim? 😭😭😭
Seria possível uma mudança honesta na altura do campeonato? Não sei, mas sigo tentando.
Depois de muita terapia e o estômago cheio de sapos, tenho adotado uma estratégia diferente. Não ignoro mais as conversas difíceis. Passo um café e sigo. Mas escolho meticulosamente o quê e com quem vale estabelecer esse diálogo. Fase 1. Tenho ficado orgulhosa de mim. Consigo não ser possuída pela raiva e exaltação. Mergulho de coração aberto em busca de uma solução, usando minha franqueza sem ofender ou levantar a voz. E ouvindo mais do que falando. Não é fácil e nem confortável, diga-se de passagem.
Toda comunicação está fadada ao fracasso?
Talvez ela esteja suscetível ao fracasso, pois há muitas variáveis em que o processo comunicacional está condicionado: linguagem, escuta, interpretação, emoção, repertório, etc. Entre o emissor e o interlocutor podem existir muitos muros que, quando concretos demais, não deixam brechas para que a mensagem chegue à sua transparência. Se isso existir…
Ainda que nos esforcemos para eliminar os ruídos na comunicação, sempre poderá existir uma barreira. Daí, um amigo me mandou um texto chamado A palavra que fere, Jacques Alain Miller. A buchada de bode começou a ser preparada no caldeirão da minha cabeça inquieta.
A comunicação ruim ou, simplesmente, ruidosa, por qualquer que seja o motivo, é o próprio balaio da confusão. Ainda que os interlocutores partilham do mesmo idioma o muro está ali: bem concretado impedindo qualquer boa vontade de entendimento. Não é preciso uma torre de babel para que o caos se instale.
Jacques Alain Miller diz que interpretação não é uma técnica, pois, se assim fosse, poderia ser ensinada. Interpretação é uma postura ética. Logo, as conversas difíceis só podem se realizar de forma resolutiva se os interlocutores estão alicerçados na mesma ética. Assim creio…
Outra característica que me parece inerente ao meu ser é a reclamação. Viciada em reclamar. Anos e anos azeda, mas eu sei bem os caminhos que me tornaram assim. Quando passei a me ouvir, meu deus, que pessoa insuportável. Mãos na massa mais uma vez: reduzi a bagagem de reclamações, transformando o repertório de palavras, selecionando o que vale minha atenção e mudando a perspectiva do olhar sobre a vida, sobretudo porque me faz mal.
Também não me refiro a adotar uma positividade alienante, irritante (ops, escapuliu) e tomar a vida como bela e justa, e de repente, tudo é lindo e como deve ser! Ou adotar a hermenêutica da suspeita e acreditar que o mundo é mágico e está sempre me enviando cintilantes sinais de sabedoria. Nopt. Eu que não faça uma profunda autocrítica e cultive o bom senso…
“Quem se dá conta de ser feliz já deixou de sê-lo […] Quem é feliz não pode saber que o é. O sujeito da felicidade não é um sujeito. […] Só existe sobre a Terra uma possibilidade de felicidade: crer no divino e não aspirar alcançá-lo.” Giorgio Agamben, em Profanações.
Enfim, a questão é tentar encontrar um equilíbrio búdico. Cultivar uma vida que não renegue a realidade ao mesmo tempo que haja um pouco de paz, um pouco de caos. Será possível?
Estava lendo a news Pinga com Limones e em um momento ela fala sobre estar cansada de estar cansada. Oxi, exatamente o que venho sentindo desde o falecimento do meu tio. Cansei de estar cansada, quero colocar meu Olympikus e ficar cansada de tanto viver. Tá tudo muito sossegado, paz demais. Eu quero ir mais à feira da Glória aos domingos e ficar fatigada de bater perna pelas barracas: comprar um óculos de sol, uma bijuteria moderna, comer arroz jollof e ouvir chorinho. Quero acordar rouca, dar uma bela faxina dentro dos armários, rever meus amigos, ir à praia, voltar a acordar às 4h da manhã para estudar, ficar cansada de tanta vida que possa caber numa vida. Me sinto pronta para descer um pouco do meu castelo, tão meticulosamente protegido, e ralar os joelhos, dançar forró, ir para ilha grande no ano novo. Até Muriqui, quem sabe.
Não, não estou cansada da minha companhia e nem da rotina que eu construí, que por sinal me faz muito bem. Não passo meus finais de semana ansiosa para ““fazer alguma coisa”” e sentindo FOMO apenas por ver outras pessoas vivendo nas redes sociais. Não é isso. É uma vontade de me fazer mais disponível para o que me faz bem: me reintegrar e me conectar com as situações que despertam sorrisos gratuitos.
Deixar a vida mais fácil também pode ser uma postura.
40 e poucos dias de Bluesky, de Davi Rocha.
Santinho que ficava debaixo da passarela na Dutra. Essa foto foi tirada um dia antes dele aparecer todo espatifado no chão.
Esse texto veio em um momento muito interessante. Tenho muita dificuldade de estabelecer conversas difíceis, ainda que me considere um comunicador calmo e pacífico. Talvez esse seja o problema. Vejo tutoriais de CNV e alguns me parecem uma esquete do Porta dos Fundos, mas entendo a importância de assimilar a ideia. Curioso com o texto do Miller. Um abraço
Rai, ando nesse movimento também de me escutar e as vezes me achar combativa e reclamona demais. Melhorei bastante, mas ainda posso mais. Hahahaha
Amei o texto e quero ler ele de novo depois para a gente voltar a conversar sobre.
Um beijo, minha amiga!