Fazia muito tempo que não pegava o trem. Foram uns 20 anos de relacionamento permeado por momentos de alegria e raiva. Ora faculdade, ora trabalho, ora para chegar na Fiocruz. Metade da minha vida foi atravessada nesses trilhos. Poderia pensar tal qual Heráclito: Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo trem.
Já perdi a conta de quantas vezes pulei os trilhos quando o ramal Japeri alternava a plataforma na Central do Brasil. Eu - uma fedelha - e mil homens arriscando suas vidas naquela passagem perigosa só para conseguir sentar.
Vagão da sueca, latão de Brahma às sextas, pele, torcida, culto, falso arrastão, goteira de chuva, perder a estação, tudo acontece e todo mundo aceita pix.
Hoje peguei meu ramal Japeri rumo Manguinhos, depois de 3 anos sem fazer esse trajeto. Precisava ir a Fiocruz buscar meu diploma do mestrado que ficou esquecido por lá desde 2022.
Quando o trem parou na estação, parcialmente cheia, consegui me posicionar e ficar em frente a porta. Eu tenho um macete de esticar as pernas para conseguir me mover rápido, caso a porta pare longe. Consegui sentar! Prova que minhas habilidades passadas de conseguir um bom lugar para viajar ainda permaneciam intactas.
Mas entrou uma idosa 🥹.
Cedi o lugar e continuei a viagem em pé. Ela segurou minhas coisas e eu fiquei lendo o meu livro - Uma tristeza infinita de Antônio Xerxenesky.
A idosa saiu e voltei para o meu assento. Me ajeitei, coloquei a sacola nos joelhos e bati o olho em um senhor que estava a frente. Ele tinha os bigodes brancos levemente inclinados para o alto, uma tatuagem grande do Buda no antebraço, usava boina, segurava uma bengala elegante em uma mão e na outra segurava um livro. Que livro é esse que ele está lendo? Consegui enxergar o autor, era Hans Staden. Nunca ouvi falar. O título do livro estava em alemão. Caramba, o velho lê em alemão.
Joguei o autor no Google e achei o título que ele estava lendo. Na versão em português se chama “Duas viagens ao Brasil: Primeiros registros sobre o Brasil.
Fiquei indignada comigo. Fiz uma graduação de História, na Unirio, e não sei que livro é esse. Me senti burra. Não consegui reter todo conhecimento que tive acesso e agora descobri que esse mercenário e arcabuzeiro alemão aportou no Brasil em 1525, escreveu suas percepções sobre o território e eu nunca li isso. Descobri no trem.
Voltei para minha leitura.
Chegando no Maracanã fechei meu livro e o guardei na bolsa. Reparei que o senhor fez o mesmo movimento e também guardou seu livro. Então ele também ia descer no Maracanã? Ah, ele deve ir para UERJ.
Ali eu me despedi silenciosamente dele, mas curiosa para saber quem era, o que fazia por ali e o porquê daquele livro.
Continuei meu trajeto. Precisava fazer a baldeação para pegar o Gramacho e descer em Manguinhos. Comprei as empadinhas do jacaré e tomei aquele café melado que vende na plataforma por um real. Os gostos eram os mesmos, ruins. O trem muito barulhento e crianças demais trabalhando, inclusive menores que minha filha.
Fiquei pensando em todas as vezes - quantas horas da minha vida seriam no total? - que estava ali. Me veio as memórias de trem que eu vivi e vou compartilhar algumas com vocês.
Atenção: portas em movimento.
Um aniversário no vagão
Quando fiz jornalismo, na Facha, eu pegava em Nova Iguaçu o mesmo trem que saia às 6h30 da manhã. Aquela rotina me fez conhecer muitas pessoas que também pegavam o mesmo trem e o mesmo vagão. Na época eu ainda era muito sociável. Fiz amizades e cheguei a ganhar uma festa de aniversário surpresa no vagão. Tinha bolas coloridas, broa de milho, cerveja e pão com mortadela. Tudo às 6h30 da manhã. Depois de 5 anos e concluída a graduação, só vi meus amigos do trem uma única vez aleatoriamente no centro de Nova Iguaçu.
Mas fiz outras amizades que duraram o tempo da viagem, como estampei no Facebook em 2018.
Bananada tijolão 0,50
A sapatilha
Algo aconteceu e os trens estavam todos atrasados. A plataforma entupiu de gente. Não tinha smartphone para checar no Twitter a causa daquele transtorno.
Eu estava com minha amiga indo para a faculdade. Depois de muito tempo esperando um trem surgiu. As massas enlouquecidas se posicionaram para conseguir entrar naquele trem. Eu peguei a mão da Carol e disse pra ela “segura firme”. Nessa época não existia a frase ‘Ninguém solta a mão de ninguém’.
Na hora que as portas abriram puxei ela pra dentro. Até conseguimos um lugar, mas ela caiu no chão junto com algumas pessoas. E, de repente, cadê a sapatilha dela? Alguém pisou, saiu do pé e não dava pra encontrar. O trem estava cheio demais! Carol ficou descalça até Madureira. Pois só quando o trem deu uma esvaziada conseguimos encontrar a sapatilha dela lá do outro lado do vagão.
Duas massas de pastel por 5!
O dia que pedi esmola no balcão
Eu andava com dinheiro contado. Não que eu gostasse, mas o dinheiro era pouco mesmo. Dava para a passagem e um pão na chapa na Central do Brasil. E um dia aconteceu o que estava fadado a acontecer. Alguma moeda se perdeu, faltou o dinheiro da passagem. E eu só pensava “meu deus, como vou sair daqui a voltar pra casa?!”.
Vou ter que pedir, foda-se. Virei para a pessoa que estava atrás de mim e perguntei se ela poderia completar minha passagem, porque eu tinha perdido o dinheiro. E pronto, problema resolvido e eu cheguei em casa.
Viva a generosidade do povo brasileiro!
4 pacotes de biscoito por 10. O café da manhã, o lanchinho das crianças.
O grande apagão de 2009
Onde você estava quando o apagão aconteceu? Pois bem, eu estava no trem. Nessa época eu estudava a noite. Consegui sentar e dormir. De repente: gritos, o trem parou e tudo ficou um breu. Após muitos minutos de espera, as pessoas começaram a descer pelos trilhos. Abriram as portas com as mãos. Acabei acompanhando a maioria até chegarmos em Deodoro. Lá, com a cidade completamente escura, consegui pegar um ônibus. Mas como eu andava com dinheiro contado (lembra?) - sem contar com imprevistos - tive minha passagem paga mais uma vez por alguém. Juro que nunca mais fiz essa maluquice de sair com dinheiro contado. Se tô dura nem de casa eu saio!
Após horas e horas consegui chegar em casa. O marido da moça que pagou minha passagem foi buscá-la de carro na Via Light e eles me deram uma carona. Quem me protege, pelo visto não pode cochilar.
Cocada recheada da Bahia é 1!
Uma tristeza infinita no trem
Eu estava arrasada. Na verdade, apaixonada. Sofrendo de amor, tal qual Annie Ernaux em uma Paixão Simples. Não conversava muito com os amigos, pois eu já havia me exposto demais e me sentia uma grande trouxa.
Mas aquela tristeza infinita estava ali comigo.
Descendo as escadas da estação de Nova Iguaçu, com os olhos cheios de lágrimas, pensei: vou pegar a primeira pessoa que me der bom dia e contar tudo o que estou passando para ela.
Nessa época eu não fazia terapia, dá para perceber, né?
Dito e feito. Uma moça se sentou ao meu lado e eu contei toda a minha história de amor e sofrimento. Sai aliviada daquela conversa e satisfeita por ter desabafado com alguém que eu nunca mais veria na vida.
O problema é que eu a vi. Esbarrei com essa moça umas quatro vezes na estação de Nova Iguaçu e ela queria saber os desfechos. E eu não queria mais contar nada. Já tinha até me arrependido do desabafo. Eu corri dela, já fingi que estava dormindo, já dei meia-volta só para escapar daquela situação indelicada de prestar contas daquela história inacabada com uma desconhecida.
Balinha de coco, é puro leite, é puro coco…
Próxima estação: Nova Iguaçu. Desembarque pelo lado esquerdo.
Para quem ainda não fez um passeio pelas casas ricas de Nova Iguaçu, venha comigo!
Viajei contigo nesse texto delicioso!
suas histórias me lembraram da época em que eu pegava ônibus para ir à faculdade. mesma linha, mesmo horário, mesmo motorista, mesmos passageiros. eu não era muito sociável: pegava num ponto em que ainda havia lugar na janela e ia dormindo até o ponto final. mas sempre rolava festa de aniversário. e o motorista, como conhecia a maioria dos passageiros, ficava enrolando um tempo nos pontos esperando por alguém que estava atrasado.