Um passeio pelas casas ricas de Nova Iguaçu
Ou como desaparecem os cacos de vidro no muro das casas
Nova Iguaçu é uma cidade curiosa. Ao mesmo tempo que é Baixada Fluminense, subúrbio, também é um lugar com uma galera cheia da grana. “Subúrbio” porque é assim que as grandes mídias e a metrópole nos enxergam. Só somos notícias quando ocorrem assassinatos ou os políticos daqui estão envolvidos em corrupção. Nunca vi o RJTV vir na Baixada para falar sobre o clima e como as pessoas estão lidando com a sensação térmica alta. Eles só fazem plantão nas orlas. Estão perdendo a excelente oportunidade de mostrar as piscinas na calçada e o Bastilha (bar da cidade) com seu banho de mangueira para os clientes. Alô, Fachel!
Para quem mora na Zona Sul do Rio de Janeiro, provavelmente a Baixada é só mais um lugar pobre e violento do estado. Não que não seja, mas é muito mais complexo do que isso. O que me vem logo a cabeça um TED da incrível Renata Saavedra: Há vida inteligente fora da bolha, onde ela fala sobre a produção cultural em outras regiões "fora da bolha" - eixo Centro do Rio e ZS - e como as pessoas possuem uma concepção de cidade tão limitada.
No meu mestrado de História das Ciências estudamos um historiador chamado Kapil Raj. Ele investiga o papel da ciência e da tecnologia nas práticas coloniais e como a ciência desempenhou um papel fundamental na manutenção do império colonial europeu. E lindamente problematiza a categoria “periferia” muito associada a uma tábula rasa, um receptor passivo de tudo o que é produzido nos centros.
Inclusive conheci o Kapil Raj na Fiocruz e tietei mesmo! Olha como ele ficou contente por nos conhecer também!
Uma pausa para compartilhar uma memória
Fiz jornalismo na Facha, em Botafogo. Certa vez, tivemos um trabalho de entrevista para fazer. Escolhi um artista plástico de Nova Iguaçu e alguns amigos (moradores da Gávea) ficaram no meu grupo. Fiz os dois pegar o ramal Japeri (minha linha do trem na Supervia) e vir a Nova Iguaçu realizar a tal entrevista comigo. Tínhamos vinte e poucos anos e eles nunca haviam andado de trem. Tudo foi uma experiência antropológica e eu fiquei muito contente de poder deslocar aqueles dois serzinhos para fora de seus quintais e, por um dia, viver e sofrer com aquele percurso infinito e insólito Botafogo x Nova Iguaçu. Ficaram cansados, mas fizeram boas compras no trem.
Volta para onde estávamos
Assim como os próprios seres humanos, as cidades também são complexas e ambíguas. Tem de tudo e muitas vezes esse tudo é misturado, heterogêneo e disforme. E assim como as algumas pessoas, certos lugares são mais difíceis de categorizar.
Nesta análise corriqueira, vou me restringir a Nova Iguaçu, pois é a região em que eu tenho alguma propriedade para falar. Essa cidade é um caldeirão e arrisco dizer que são muitas em uma só.
Se é possível fazer alguma equivalência - torcendo muito o pano - o centro de Nova Iguaçu é a Zona Sul. Eita que tem shopping, condomínio de bacana, franquias, restaurantes instagramáveis, clube da high society, carrões, docerias cujo brigadeiro é R$20, enfim… todo um complexo de serviços para atender a demanda dos nobres - mas não refinados - moradores. Mas aqui uma BMW para no semáforo ao lado de uma carroça.
E no mesmo aniversário tem o policial, o trabalhador, o traficante, a vovó, as crianças, a garota de programa, o empresário, o vereador, o ambulante, o médico, o estelionatário, o bolsonarista, o progressista. Tudo junto e misturado! O povo do twitter ficaria louco de ver uma cena dessa. “Não Pode!”, eles dizem.
Faça você mesmo um passeio pela parte rica de Nova Iguaçu com a Rebeca e o Fabiano.
Essa parte nobre fica “do outro lado” da linha trem. Quem mora aqui entende o que essa divisão significa.
É inevitável não pensar no processo de gentrificação das cidades. E para quem não sabe o que o termo significa, eu vi essa ilustração da Bruna Maia, na newsletter News do Clima:
Sim, beber no centro de Nova Iguaçu pode te custar 30 reais se for no Golfinho de Ouro ou 200 no Bahamas. You choice! Mas não sei se o conceito de gentrificação cabe, de fato, em Nova Iguaçu. Há de se investigar com réguas mais precisas quem é essa população. Mas é inegável que boa parte do centro se transformou. Chegamos ao ponto de precisar andar muito para achar um pé-sujo no centro da cidade, mas não foram os donos de start-ups ou artistas os responsáveis por esta façanha.
O raio gourmetizador (sei que essa expressão já saiu de moda) chegou em Nova Iguaçu rasgando. As casinhas sucumbiram e os prédios subiram. Ali onde era o botequim Boca Maldita agora é uma loja Via Mia. E para qualquer direção que você vire a cabeça tem uma farmácia. É tanta farmácia que você pode pensar “O povo em Nova Iguaçu tá muito doente”. Mas não, as farmácias são praticamente um shopping.
Esse fenômeno de crescimento do centro de Nova Iguaçu é o mesmo que acontece em outras cidades. Os investimentos são alocados nos “centros”, que se “sofistica” e muda completamente a dinâmica de coletividade. Os entornos são sempre deixados para depois. Se você sai desse centro e continua reto toda vida, vai chegar ali no Valverde, Cabuçu e o cenário vai ficando diferente. São 385 mil igrejas evangélicas, uma galinha perdida na rua e muitas farmácias. E, é claro, milicianos que tomam as regiões onde o Estado ignora.
Inclusive vi muitas semelhanças entre Nova Iguaçu e Varanasi. Lá eles também descartam os sofás na calçada e colocam fogo no lixo.
Então, ao mesmo tempo que Nova Iguaçu tem essas áreas nobres e sua própria burguesia - que está localizada na região central, também tem os bairros do entorno que ainda mantém aquelas tradições suburbanas, tipo cadeira de praia na calçada, festa de bairro e casinhas fofas.
Você pode chamar todas essas mudanças - que vai desde arquitetura a hábitos - de progresso, mas eu vejo como uma uniformização da vida. O capitalismo faz isso mesmo. O que não nos impede de discutir o espaço urbano.
Se antes as casas tinham aquela estética mais antiga, com azulejos de santos na fachada, cacos de vidro no muro para espantar os ladrões, hoje a concepção mudou. Quem tem um pouco mais de grana investe numa casa que se assemelha a uma clínica de estética. Portões e janelas de alumínio branco, revestimentos que simulam madeira, plantas artificiais, e por ai vai.
Adeus, casinhas! Eu amo essa da minha antiga rua.
Aonde eu quero chegar com tudo isso? Em lugar nenhum! Ou eu já não sei mais. Só queria te dizer como Nova Iguaçu está diferente, como eu amo e valorizo uma casa com quintal, cerveja barata de botequim, como toda burguesia - onde quer que esteja - é cafona, e que o capitalismo padroniza nossas vidas nas mais diferentes instâncias. Parece que estamos lutando feito loucos para sermos igual a todo mundo.
Morei no subúrbio do Rio, por onde estive de 1982 a 1990. Vivi em Cascadura por uns meses e quase cinco anos no Morro do Tuiutu (Terreirão), em São Cristóvão. Visitei Nova Iguaçu em 1982/83 - era bem roça... Retornei por volta de 2021. Fiquei muito surpreso ao ver as transformações no centro e arredores. Meu amigo e sócio na editora, Rogério Mota, mora no Cabuçu (aí é roça mesmo!). Ele continua trabalhando a distãncia, depois de passar uma temporada em Porto Velho e fazer o mestrado em Estudos Literários na nossa universidade federal (UNIR).
Adoro o subúrbio. Sempre digo que o Rio se avalia do centro para as zonas Norte e Oeste, onde a vida pulsa (isso inclui os municípios da Baixada!).
Eu fiz um trabalho voluntário em Jardim Primavera, Duque de Caxias, num orfanato, junto com os amigos do Alojamento do Fundão (fiz IFCS!). Andávamos no trem Maria Fumaça. Uma autêntica viagem a outros tempos.
Enfim, muitas saudades do Rio e sua boa gente!!