Um dia fiz um story reclamando de uma situação na academia que me incomoda: os artistas dos Reels e Tiktok que ficam se filmando enquanto treinam. Sugeri a criação de um ambiente chamado studio, uma área com halters e espelho para os gracyanners produzirem suas mídias sem atrapalhar ninguém e distantes de julgamentos como os meus.
Na imagem é possível ver que o indivíduo escorou o celular na garrafa na minha direção. Eu estava fazendo passada, logo o tripé improvisado ficou no meio do caminho.
Uma conhecida respondeu meu story e me deu unfollow. Provavelmente ela produz esse tipo de conteúdo e se sentiu ofendida com minha postagem. Ela disse que as pessoas se filmam porque inspiram outras pessoas a treinar e que meu deboche era vergonhoso. Internamente eu ri, porque não é possível que as pessoas estejam tão pobres de referência para tomar uma pessoa aleatória numa rede social como inspiração.
90% dos conteúdos vêm da vontade súbita de aparecer e todo mundo está suscetível a isso, ok. Cabe aos usuários filtrar o que lhe interessa ver (minimizando impactos). Desnecessário latir para alguém - quem quer que seja. Um passeio pelo instagram e você esbarra em coisas que te interessam e não te interessam, e você pode:
Dar unfollow;
Silenciar;
Bloquear;
Denunciar;
Deletar o aplicativo;
Usar menos.
Todas as alternativas estão diponíveis para todos. Se não fosse por questões de trabalho eu já teria me despedido da rede em questão, porque eu sei que esse ambiente virtual se tornou antiquado para mim. Logo, os incomodados que se mudem, não é mesmo?
Inclusive, comentava muito as notícias nos perfis como CNN, GloboNews. É um inferno e parei porque percebia não fazer sentido comentar em alguma postagem e receber mil haters de bolsonaristas, por exemplo. Priorizar minha paz.
O instagram tem aquele cheiro de coisa velha, sem serventia, guardada na gaveta com naftalina. É inegável que as redes modificaram nossa subjetividade e trouxeram novas premissas comportamentais, como a convocação a constante performance. Estamos mais carentes e sinalizamos isso quando compartilhamos nossa intimidade com inúmeras pessoas que na vida real tem pouca significância e esperamos ser notados por elas.
A compensação financeira, provavelmente, é o maior motor dos usuários. Mas partindo da premissa que não é todo mundo que ganha dinheiro com as plataformas, por que seguimos a mesma lógica mercadológica? Estamos buscando o quê quando performamos como produtos se não estamos vendendo nada, só por puro "lazer"? Os estímulos vêm de todas as direções.
Será que o consumo de mandioca aumentou após esse story conceitual que eu fiz no mercado?
A minha conta no Instagram é fechada, mas em algum momento foi aberta. E apesar de não postar com constância e regularidade, fiquei pensando sobre aquelas 1.100 pessoas que tinham ali, mais ou menos. Gente demais. Eu não conheço mil pessoas e me dá coceira imaginar que uma pessoa pode bisbilhotar nossa vida em um único clique. E pior, nós mesmos fornecemos todo o material de mão beijada. O grande espetáculo da vida privada. É vida real ou um constructo do nosso ideal de vida e persona?
Ainda que possa ser um pouco dos dois e que essas dimensões se fundem - somos narradores, observadores e personagens - e no final das contas, não tenho o menor interesse em compartilhar minhas coisinhas para uma multidão. Comecei uma limpa, porque se for para ter rede social que estejam ali pessoas que eu tenha vínculo afetivo, não um conhecido que vi uma vez na vida e pediu solicitação, como foi o caso da moça que citei.
Limpa, limpa, limpa, limpa toda energia
Já não bastam os anúncios que transbordam das redes sociais, as pessoas agem como anúncios, se portam como produtos, disputando a atenção dos consumidores que passeiam pelo mercado digital. A necessidade de ser visível enfiou as pessoas num ciclo de autoexploração que beira o pedantismo, desculpa a franqueza.
Provavelmente ela está certa e eu errada, pois há mais pessoas produzindo esse tipo de conteúdo do que questionando a necessidade de validação do olhar do outro. Enquanto sociedade:
Naturalizamos esse espetáculo narcísico ao ponto de achar que as frivolidades que postamos são relevantes; Pelo amor, não podemos levar aquilo tão a sério.
Acreditamos que precisamos bater boca quando vemos algo que não concordamos.
Estamos fascinados pela incitação da visibilidade;
Saudades da época em que as pessoas agiam normalmente em redes sociais e não se preocupavam com o marketing de si a cada postagem. Não faz muito tempo que existia um senso de comunidade nas redes, mas que se esvaiu completamente até ser dominado pela performance mercado. Felizmente, ainda consigo experimentar esse espírito social mais colaborativo no Substrack: comunidade de escritores e leitores que trocam espontaneamente. Por enquanto, né. Vai saber o que essa plataforma pode se tornar daqui alguns anos. Não vejo por aqui um desespero por likes e métricas, ainda que nosso desejo seja criar/manter/aumentar um grupo de leitores.
Sinto falta das coisas orgânicas e espontâneas, sabe? Quando as redes não eram uma vitrine e não existia essse apelo mercadológico. Tudo está muito Tati Bernardi, se é que vocês me entendem.
Hipertrofia do eu
O título dessa postagem é nome do livro da Paula Sibilia: O show do eu: a intimidade como espetáculo, que traz explicações mais fundamentadas do que as minhas para analisar esse culto à personalidade, e consequentemente, o declínio do homem público.
Mas não irei me furtar de tecer minhas próprias reflexões sobre esse surto de megalomania que as redes sociais despertaram nas pessoas. Suas opiniões, seus rostos, suas conquistas, sua intimidade, tudo é público. A prisão, de fato, é transparente. É possível ver tanta coisa, que vemos mais do que gostaríamos.
Tipo, um colega querido que posta esse tipo de coisa se achando muito politizado, enquanto meus olhos emanam tristeza e minha mente diz tadinho. As pessoas não têm mais vergonha de expor suas ignorâncias, suas inclinações ao fascismo e ao conservadorismo hipócrita - os mais ferozes defensores da família são aqueles que tem três. E as redes sociais acabam mostrando facetas das pessoas que antes ficavam ocultas, então era mais fácil lidar com elas.
O processo de plataformização do mercado de trabalho é um fenômeno relativamente recente, que impôs mudanças - que envolvem muitos atores - e que precisam ser discutidas e analisadas: desemprego, flexibilidade, taxas que não são negociáveis, precarização, desregulamentação do trabalho, relações de mercado, incerteza de rendimentos e nenhuma proteção social. Mas a pessoa do post acima quer resumir todo um debate com uma frase e um emoji. E convenhamos, nenhuma preocupação com o pobre. Puro mau-caratismo. É o esvaziamento de qualquer discussão honesta.
É essa ausência de profundidade das discussões que tornam as redes sociais esse repositório de shitsgtorm (tempestade de merda) ruidoso que tem levado o debate público a ruina. "Eu gosto do Lula" ou "Eu não gosto do Lula" e assim não discutimos políticas públicas. Como poderíamos, por exemplo, avançar na pauta do aborto tratando-o como uma questão de saúde pública se as pessoas começam o debate com um "fariam" ou "não fariam". Não importa se você abortaria ou não, a discussão não deveria começar por aí. É necessário um esforço intelectual honesto, mas parece que a capacidade cognitiva da população foi sequestrada e as redes sociais têm uma parcela de responsabilidade nisso.
Vide a quantidade de mídias (imagens e vídeos) que mastigam e resumem conteúdos, porque há demanda. As pessoas têm preguiça de pesquisar, estudar e aprofundar. Elegem uma "autoridade", geralmente duvidosa para respaldar suas opiniões. Rola o carrosel e nasce um "especialista".
Refletir o mundo requer paciência, tempo, escuta e disposição, virtudes abocanhadas pela dinâmica de funcionamento das redes.
É inegável como na mesa de bar as pessoas são mais agradáveis e ponderam antes de soltar alguma coisa. Tem algo nas plataformas que traz à tona o pior que que existe em cada um. É confortável opinar ou se posicionar sobre questões nunca refletidas de maneira séria. Basta um repost sobre a pauta do momento e o usuário da internet se acha o Aristóteles.
Cansei.
Coisas boas que achei por aí
Eu nunca quis ser patrão, da newsletter Cartas de JP, por ele mesmo;
Não vi & nem verei, do jornalista Junior Bueno, sobre a cerimônia do oscar e o filme Oppenheimer.
Viagem, substantivo feminino, da Gabriele Duarte, me fez viajar junto.
Eis o texto que eu gostaria de ter escrito sobre tanto exibicionismo. Juntei os pontos sobre os incômodos que ando sentindo a respeito. Obrigada pela escrita e pela menção generosa, Raisa! ❤️
Fiz academia a primeira vez em 2002 (então com dezessete anos) e algo entre 2004-10. Depois uma breve passada entre 2018-19. Nessa última, lembro que estranhei muito as pessoas se filmando. NUNCA havia ocorrido de fazer tal coisa nas minhas passagens anteriores.
Salto para um video de hoje do Thiago Santinelli: sobre coach mirim. Meninos de uns 12 anos falando em investir e não desperdiçar o tempo. Isso me fez recordar de um discurso de um menino - mais ou menos da mesma idade - que encontrei vendendo bombom no bar dia desses. Algo como começar o próprio negócio e juntar os primeiros cem mil reais.
Não tem jeito: o sujeito se constitui a partir das ofertas discursivas oferecidas no recorte histórico que ele está inserido. Não tem essa de vida natural. E se a pessoa já tem uma certa idade e as coisas estão aceleradas como estão, cá estamos nós, perplexos, deslocados, sem entender ou aceitar como as pessoas agem.
(que bom que se recuperou da dengue)
✌🏽