Um pé na abstração e o outro na realidade: a anatomia do pensamento
Por que pensamos o que pensamos?
Esses dias ouvi o último episódio do podcast Vinte mil léguas sobre Galileu. Mais uma temporada incrível! Leda e Sofia são mestras em contar boas histórias e traduzir as durezas do mundo científico em uma narrativa poética. Você termina o episódio com a curiosidade aguçada e a sensação de cintilação na cabeça.
Achei curioso como Galileu usou uma abordagem literária para explicar suas teorias científicas. Ele sabia que suas ideias caminhavam na contramão do entendimento de mundo da sua época. Foi preciso criar estratégias para jogar sua semente, ainda que o solo fosse infértil.
Assim como Darwin, que demorou a publicar a Origem das Espécies não só pelo incessante refinamento de sua teoria, mas também por receio da reação da sociedade e da comunidade cientifica.
Ideias podem sofrer obstáculos das mais diversas ordens: tem implicações e não são amplamente aceitas.
Parece que o mundo nunca está preparado para avançar, porque majoritariamente estamos sempre presos a visões consensuais da realidade (materiais e subjetivas) e tudo que abala as estruturas conhecidas põe fim a nossa fugidia sensação de segurança. Então é preciso lançar mão de algumas "mentiras que contam a verdade" até que a maioria esteja preparada para compreender melhor a "realidade".
Internalizamos a cultura, pois parece ser a única maneira de sobreviver no mundo sem ser ou parecer um errante lunático. Mas, convenhamos, para colocar as ideias pra fora é preciso abdicar do medo de parecer ridículo ou ser hostilizado pelos pares.
Isso explica porquê há menos gênios (nem sei se essa seria a palavra correta) e muito mais, muito mais, muito mais pessoas adaptadas a ordem "natural" das coisas. É mais fácil ser como todo mundo. Até mesmo o percurso entre o querer e o ser não é linear. Mas não deveríamos todos adotar uma postura de questionamento da ordem das coisas? Acredito que assim poderíamos construir novas possibilidades de existência. Manter sempre acesa a fagulha da desconfiança e da imaginação (mas sem virar um terraplanista).
Um pé na abstração e o outro na realidade.
Semana passada circulou uma pesquisa que mede a criatividade de adolescentes de quinze anos. Mais da metade dos alunos brasileiros apresentou um baixo nível de criatividade ao tentar solucionar problemas sociais e científicos. Ficamos mal posicionados no ranking. E se a pesquisa abrangesse outras faixas etárias, o índice continuaria baixo, pois não são apenas os adolescentes acometidos pela falta de criatividade e a limitação do pensamento.
É praticamente impossível fazer uma análise em que o recorte de classe não tenha importância… A pesquisa aponta uma diferença significativa, de 11 pontos, entre o desempenho dos alunos brasileiros mais pobres (19 pontos) e dos mais favorecidos economicamente (30 pontos).
É difícil colocar a cabeça para pensar e criar quando os infortúnios da escassez material gritam e jogam na sua cara outras urgências.
Para que as ideias nasçam é preciso pensar. É preciso tédio, imaginação, curiosidade, boas conversas, questionamentos, espanto! Explorar as lacunas, fazer conexões, abusar da liberdade do pensamento, afinal, dentro da nossa cabeça estamos a sós. Mas enquanto sociedade, parece que estamos dormindo cobertos de conformismo, consensualidade e pequenas doses de dopamina.
Pelo segundo dia consecutivo, minha filha de 11 anos, ao se preparar para dormir ficava triste. Fui conversar com ela para saber o que estava acontecendo, já que aquela carinha de cão abandonado se manifestava no mesmo horário. E pasmem! Ela disse que antes de dormir ficava triste porque ela pensava. Misericórdia, você só pensa antes de dormir? o que você faz o dia todo? Eu sei a resposta e a culpa também é minha: celular. Inclusive, em um dia de castigo completamente offline, ela pegou umas caixas de papelão e começou a construir uma casa. No final do dia me agradeceu por ter tirado o telefone.
Rastreando os percursos das boas ideias
Por que pensamos o que pensamos? Segundo vozes da minha cabeça, a qualidade dos nossos pensamentos é determinada por uma miscelânea disforme de todas as informações que nos chegam, as pessoas que circundam nossa convivência e os ambientes que circulamos e vivemos.
Gosto de pensar a vida como uma paisagem e as reflexões como uma ginástica mental para o cérebro. Vou à academia todos os dias visando treinar meus músculos para que eles tenham força e equilíbrio ao abaixar para pegar as panelas embaixo da pia. Logo, a gente também precisa colocar a cabeça para trabalhar. Não foi Oscar Wilde que disse algo mais ou menos assim "Se você não pode pensar bem, outros vão fazer o seu pensamento para você". E na mesma lógica, refletir as paisagens que eu coloco o meu corpo. Quero estar nesse lugar? O que eu estou fazendo aqui?
Mas voltando para o malabarismo mental, acredito ser fundamental uma curadoria sobre as coisas que jogamos na nossa cabeça. Por exemplo, se você consumir noticiário mais de 50% do seu tempo, certamente pode desenvolver uma "paranoia". Fonte: Datacu. Mas faz sentido, vai!
Quando o genocídio palestino começou, eu assistia todos os stories do fotógrafo Motaz Azaiza. Resultado? Passei semanas apática, chorosa e me assustando com qualquer barulho. Ficar ruminando apenas as desgraças da vida sufoca os encantos que poderiam surgir da nossa mente e paralisa nosso corpo. Há de se encontrar o equilíbrio, o que é muito particular de cada um.
Dentro do nosso rol de interesses, é preciso nos comprometer com tempo de qualidade: ócio, leituras, contemplação, observação, circulação, conversas, tédio, podcasts, filmes e tantos outros produtos culturais que colaboram para que ideias interessantes surjam.
Outro fator que interfere e influencia nossos pensamentos e o processo criativo é o ambiente. Como você cria ambientes propícios para que novas conexões ocorram em seu cérebro? Para mim, uma casa limpa, organizada e perfumada de incenso é um convite irrecusável para colocar a cabeça para criar.
Enfim, é preciso cuidar da mente como se fosse um jardim ou uma floresta, para evitar que o tempo e agrotóxicos devastem nossas potencialidades.
O que encontrei de bom por ai…
Como fazer amigos e elogiar pessoas, de Clara Vanali. Se você é como eu, que não sabe receber um elogio e vai logo se desmerecendo: leia!
Quantas portas se abrem e se fecham até realmente nos sentirmos pertencentes?, de Bruna Fonseca. Esse texto me pegou demais! Ainda que eu não esteja vivendo um processo de mudança geográfica e cultural, ando me sentindo num ENTRE, no LUGAR NENHUM. É esquisito, mas preciso elaborar.
Resonance over coherence, de Visakan Veerasamy. Fiquei supresa como uma tentativa desprenteciosa de escrever algo no Substack, pode se tornar um texto interessante. Queria ter esse talento. Vou tentar as estratégias do autor.
Gosto das aulas do Franklin Leopoldo na Casa do Saber especificamente pela enorme preocupação dele em definir os termos mais elementares antes de avançar. O Partiu Pensar / Inédita Pamonha do Clóvis de Barros, em muitos episódios, vai pelo mesmo caminho. Como a matéria prima do pensamento são as palavras, penso que partir dos consensos óbvios é meio caminho para o senso comum.
Pensando aqui, nos Três ensaios sobre a sexualidade do Freud, o primeiro deles é justamente de desconstrução, para depois assentar a distinção entre instinto e pulsão.
Nossa, Raisa, esse ano eu tenho feito essa reflexão o tempo todo, tentado dar espaço pro meu pensamento, minha criatividade. Mas como é difícil! Percebo como me distraio e tendo a colocar coisas para ocupar meu tempo e a cabeça. Seguimos no exercício rsrs
Fiquei feliz que meu texto apareceu nessa edição ❤️