Não romantizem a maternidade
Colocar os óculos da realidade e analisar as disparidades é a unica via possível para termos um feliz dia das mães
Tem um ditado indígena que diz ser necessária uma aldeia inteira para criar uma criança. E eu tenho a sensação de que sou essa aldeia inteira, pois ainda que minha filha tenha uma família extensa, como avós, avô, tias, tios, um padrasto, um pai vivo e fantasmagórico, etc., toda a responsabilidade de educá-la recai sobre os meus fortes ombros.
E ainda que exista uma rede de apoio - ela é muito importante - essa rede está longe de ser uma aldeia e tem um preço, monetário ou não. Mas se apresenta como o único suporte possível para que a vida se desenrole para adiante e além da rotina de cuidado. A questão é: o tempo inteiro estamos pisando em ovos e fazendo malabarismos logísticos para dar conta de tudo.
E se você for uma pessoa como eu, que tem dificuldade de sinalizar ajuda, o negócio piora.
Fico refletindo sobre a maternidade nestes tempos atuais... Majoritariamente somos mães que trabalham fora e dentro de casa, estudamos, praticamos uma atividade física, mantemos hobbies e seguimos com os nossos próprios sonhos e individualidades. E que bom! A vida precisa de combustível e significados. Jamais me adequaria a performar exclusivamente o papel de mãe-esposa, como muito tenho visto nas redes sociais: uma ode a trad wife que deseja nos empurrar novamente para o estado de submissão e anulação da nossa própria vida e dos nossos desejos.
É bom lembrar que a trad wife também acumula funções, fica exausta, mas, de quebra, se torna completamente vulnerável. Obrigada, não quero.
É preciso conciliar todas as nossas demandas contemporâneas e responsabilidades com a maternagem. Nem preciso dizer que é exaustivo e que algumas coisas ficam mal feitas com o acúmulo de funções. O cansaço nos aniquila. Ou é casa que está de pernas para o ar, ou faltamos à academia, ou estudamos só uma horinha, deixamos um texto pra depois… é o que deu pra fazer. Resta viver a vida possível. Tacar o foda-se para alguma coisa já garante um momento de paz. Às vezes é crucial assumir que não dá para fazer tudo. Pede um ifood e se poupe. Mas tem momentos que financeiramente não é uma opção viável.
Antigamente eu vivia em pé de guerra com o pai da minha filha, que mora em outro estado. Gostaria que ele participasse mais, que se fizesse presente. Mas até isso, eu cansei. Não posso passar o resto da vida fazendo cobranças e vivendo num constante estado de perturbação mental. Preferi encarar as consequências das minhas escolhas e me adaptar. Tudo poderia ser de outra maneira, mas não é. A vida real é a vida possível. Ganhei mais paz com essa decisão e hoje até conseguimos conversar de forma mais harmônica e civilizada.
Acendo um cigarro e fico refletindo sobre como a vida das mulheres está completamente entrelaçada aos cuidados. Até para nós, mulheres feministas, que questionamos todas as disparidades. Não estamos livres disso e não vejo brecha para que a vida se desenrole de outra maneira. Se eu não cuidar, tudo desaba e se eu morrer amanhã, tudo continua. O paradoxo da existência.
Logo, não gosto da romantização da maternidade. Acho mentirosa e perigosa, pois naturaliza a premissa que nós, mães, somos inteiramente responsáveis pelos filhos e insubstituíveis.
Do mesmo modo, me recuso a tecer julgamentos sbre a maternidade de outras mulheres e reforçar estereótipos de "mãe ideal". Na realidade, sou avessa a qualquer modelo que tente universalizar a singularidade das pessoas. Mas infelizmente ainda vejo nas redes sociais postagens com frases do tipo "Tem mulheres que são mães, mas tem mulheres que só tem filhos". OI? Mulheres querendo diminuir outras mulheres… Amiga, senta aqui, vamos conversar.
Nesse momento, no entanto, diria que o maternalismo é o discurso através do qual a sociedade justifica e reitera o lugar das mulheres — reduzidas à função de mães e trabalhadoras domésticas não remuneradas — no exercício de tarefas imprescindíveis para a consolidação e manutenção do capitalismo, como a reprodução social. Vera Iaconelli
Pleno século XXI, ainda escutamos discursos de natureza biológicos sobre o instinto materno. Mas daí se esquecem das mães felinas que comem ou abandonam seus filhotes deficientes. Minha antiga gata já fez isso. A biologia só é cabível para explicar o que lhes interessa: nos empurrar à solidão e a sobrecarga de fazermos tudo sozinhas, porque nascemos para isso.
A mãe não nasce junto com o filho, ela é construída paulatinamente na convivência diária, no entrelaçamento das duas vidas. O amor vai crescendo e vamos nos ajustando com o tempo.
Quando descobri a gravidez, comecei a assinar a revista Crescer, pois fiquei desesperada e o mundo não era tão digital. Eu não sabia nada sobre esse universo. Tinha a ilusão de que aquela revista me ensinaria a ser mãe (bem como todos os livros sobre como fazer um bebê dormir kkkkkkk). Nem preciso dizer que consumir essa vasta literatura não serviu de absolutamente nada. Só fiquei frustrada, pois o refluxo e as cólicas não passaram e nem minha filha dormia.
Claro que tem mulheres que parecem ter nascido para a maternidade (talvez só pareçam mesmo). Não é o meu caso. Eu amo incondicionalmente minha filha e faço o possível e o impossível por ela, mas sempre sou assombrada por um pensamento de que não sou uma boa mãe. E conversando com amigas exercendo o mesmo papel, as indagações são semelhantes. Convivemos com a culpa e autocrítica, achando que sempre poderíamos mais e melhor. Mas será que os pais fazem isso? Será que eles sentem culpa?
Eu sei que existem exceções, inclusive conheço e convivo. Mas exceções não resolvem problemas coletivos.
As mulheres são mães solo mesmo casadas. Já borrifei essa teoria na internet. A maioria das mães que eu conheço, ainda que dentro de um relacionamento nuclear, são as principais cuidadoras dos seus filhos. O casamento e a presença de um pai não é suficiente ou garantia para um cuidado equilibrado e justo. Por isso digo, se eu pudesse ser pai teria outro filho. Mas sendo mãe, tenho medo.
A responsabilidade e até os traumas sempre recaem nos ombros maternos. Tudo é culpa da mãe. Mãe narcísica, mãe tóxica, mãe isso e aquilo. Não estou dizendo que não exista, mas demonizar e patologizar as mulheres é mais fácil. Tem um diagnóstico pronto para cada movimento desordenado que fazemos. Os homens são uns coitados, não sabem dar aquilo que não receberam, enfim, milhões de teorias estapafúrdias para justificar o injustificável.
Em algum momento, vamos precisar enxergar nossos pais como pessoas que fizeram o que conseguiram. Pegar os erros e os traumas e elaborar para seguir adiante (seja com pai ou mãe). O mais importante é que temos a possibilidade de reeditá-los.
Não existe mãe de pet
Isso é uma invenção do capitalismo para arrancar dinheiro de tutores/cuidadores.
A maternidade é uma piscina de ondas que funciona 24h por dia. A piscina não desliga.
Por este motivo, acho incomparável e risível quando tentam fazer alguma equivalência da maternidade com um pet ou uma planta. Me sinto desrespeitada. Eu não tenho a possibilidade de deixar um pote com ração (ou um Mc Lanche Feliz) ou pedir para o vizinho regar minha filha e sair para trabalhar e viver normalmente. Até quando ela está com o pai, eu sigo preocupada e atenta. Então, amores a partes, pois acredito no amor absoluto e infinito que dedicamos a seres e coisas, a maternidade não se equipara a nada disso. Não é simples.
Em uma entrevista de emprego você não vai ouvir: "Você tem gatos?" "Como vai conciliar?" Mas o "Você tem filhos?" "Como vai conciliar?" Aparece. Já ouvimos.
Viver um estado de extrema vulnerabilidade e privações é triste e desesperador, mas se você tiver filhos é pior ainda, acredite. Uma coisa é você só ter uma batata doce na geladeira, outra coisa é você só poder dar batata doce para o seu filho.
E digo mais, você pode estar profundamente cansada, mas pode chegar em casa deitar na sua cama e dormir. Uma mãe, não. Ela vai precisar executar todo um ritual antes de deitar na cama e descansar. Nunca mais o "dormir" é a mesma experiência e intensidade.
Por isso, não existe mãe de pet ou mãe de planta. Se sua planta murchar, você compra outra. Além de ser poupada de passar por enormes constrangimentos sociais por ser mãe solo de caramelos ou suculentas. Se vocês soubessem a quantidade merda que já ouvi, inclusive saindo da boca de pessoas queridas, entenderiam que não existe paridade possível.
Lembrei das vezes que precisei engolir o choro com essas palavras cortantes.
Massssss
Ser mãe é descobrir em você uma força que não existia; é experimentar o amor na sua forma mais genuína, mas é uma luta que travamos todos os dias: ora ganhamos, ora perdemos, mas sempre adiante. A vida possível. Amanhã será melhor que hoje.
Então eu vou bater de frente com tudo por ela
Topar qualquer luta
Pelas pequenas alegrias da vida adulta
Eu vou
Eu vou pro fronte como guerreiro
Nem que seja pra enfrentar o planeta inteiro
Correr a maratona, chegar primeiro
E gritar "é por você, amor" Emicida, Pequenas alegrias da vida adulta
Enfim… Nomear as coisas de forma justa. Vivemos num tempo em que o significado das palavras são esvaziadas e distorcidas. Pode parecer inofensivo, mas mãe de pet e mãe de planta, busca fazer uma equivalência de cuidados e deveres que são incomparáveis, quiçá silenciam e deslegitimam nossas demandas sociais por equidade e direitos.
No mais, desejo que todas as mães possam descansar no domingo e sejam servidas.
Das coisas boas que encontrei por ai :
Suas definições de pessoa adulta foram atualizadas, Vanessa Guedes. Me reconheci tanto nesse texto e com as dificuldades que partilhamos sendo adultos com acesso a educação formal, mas que não rejeitam nenhuma possibilidade de trabalho pela necessidade.
Problemas de dinheiro, Vibes em Análise. Episódio sensacional sobre nossa relação caótica com essa convenção social que dita as regras da nossa vida: MONEY.
Criando codornas, Pedro Rabello. Equilibrando os pratinhos das expectativas, esperanças e frustrações. Ter um pé na realidade, ainda que soe pessimista, é melhor do que o peso da frustração. Concordo e recomendo.
O Tio Sam está querendo conhecer o nosso engajamento, Revista Piauí. Viramos celeiros para subcelebridades norteamericanas…enfim.
Why Some People Become Lifelong Readers, The Atlantic. Minha filha me chama de ET BILU quando começo a falar sobre livros. Ainda quero escrever um texto sobre hábitos de leitura e o desafio de despertar o interesse em uma geração completamente tiktorizada - habituados a resumos e estímulos instantâneos. Um dia nasce, mas é uma pauta urgente. Leitura não é apenas sobre livros, mas saber ler a vida nas suas singularidades.
Eu, que nem mãe sou, fico com ódio quando vejo algo ou alguém falando "mãe de pet" ("mãe de planta" então, nem se fale!). Acho um desrespeito, uma ofensa tão grande com as mães! É desconsiderar toda a sobrecarga e as inúmeras responsabilidades que vc muito bem adorda. Além disso, só reforça o estereótico de cuidado em nós mulheres e a ideia de maternidade compulsória (o correspondente "pai de pet", "pai de planta" a gente quase nem vê por aí né).
Obrigada por compartilhar esse texto. Não sou mãe, mas busco ler e ouvir mães ao meu redor, e sabendo que minha mãe foi solo mesmo em um casamento, imagino o peso e a angústia.